Criação das obras em papel segue um roteiro bem definido pelas produtoras dos jogos eletrônicos. As vendas mostram que a fórmula é correta
Jaina Proudmoore é uma feiticeira renomada de Theramore, uma cidade de Azeroth, o mundo fictício do jogo World of Warcraft. Embora a personagem seja uma presença constante no universo do game desde seu lançamento, em 1994, sua história parece nunca ter sido esgotada nos jogos — a complexidade do personagem e da trama sugerem algo mais. A Blizzard, produtora do título, percebeu isso e decidiu recorrer a um formato mais antigo para ampliar a vida de Jaina: o livro. Assim nasceu World of Warcraft — Marés da Guerra, uma história inspirada na personagem do jogo. Assim nasceu também mais de uma dezena de obras relacionadas às diversões eletrônicas e que agora ganham espaços nas livrarias brasileiras. E também nas mãos de leitores.
Na maioria dos casos, os livros não repetem a história do game, mas exploram um universo temático relacionado a ele. Contam detalhes de um personagem que passou despercebido, desvendam segredos sobre a criação de um mundo, explicam uma expansão futura ou ainda esclarecem a origem de uma série. Uma coisa contudo deve ficar clara: o processo de criação do livro é todo controlado pela produtora do game. São essas empresas que decidem o roteiro da obra e escolhem a dedo o autor que receberá a incumbência de colocar no papel histórias e personagens que ficaram famosos no mundo eletrônico.
A escolha de Jaina Proudmoore como protagonista do livro, por exemplo, foi calculada: deu-se após uma longa análise da equipe que responde por publicações dentro da Blizzard. “Primeiro, traçamos o objetivo do livro. Se a decisão for criar uma ponte entre duas expansões, já temos ideia de quais serão os potenciais protagonistas. Há ainda a possibilidade de explorarmos a origem de um jogo ou mesmo de um personagem específico”, diz Micky Neilson, roteirista da Blizzard.
Depois, vem o escritor. Para escrever sobre um jogo com propriedade, os autores precisam estar familiarizados com o universo do game. Em alguns casos, como em World of Warcraft, Diablo e EVE, é imprescindível que o escritor seja também um jogador nato da franquia. Por isso, a escolha da autora de World of Warcraft — Marés da Guerra, por exemplo, seguiu um roteiro, não o acaso. Christie Golden não só é aficionada pelo título como já havia escrito livros de ficção científica baseados nas séries Star Trek e Star Wars. Acabou escolhida. Antes de começar a escrever, recebeu dos roteiristas do jogo um guia com todas as diretrizes que deveriam ser seguidas ao longo da jornada literária no mundo de WoW.
Jaina Proudmoore
Feiticeira e líder da cidade de Theramore
“Jaina surpreendeu-se com a franqueza e melancolia das próprias palavras. De onde viriam tais sentimentos? A grã-senhora se deu conta de que não havia ninguém com quem pudesse conversar e expressar suas dúvidas. Anduin a tinha como um modelo, portanto Jaina não podia lhe confessar como se sentia abatida tantas e tantas vezes” — trecho do livro
A mecânica é muito similar em outras companhias do setor que também levam games para os livros. Na Ubisoft, desenvolvedora da franquia Assassin’s Creed, os roteiristas mantêm uma relação muito próxima com o autor durante a redação do livro — no caso, Anton Gill, renomado escritor britânico. Escrevendo sob o pseudônimo Oliver Bowden, o especialista em história desenvolve uma narrativa fluida sobre os conflitos entre a seita dos Assassinos e os membros da Ordem dos Templários. O uso de nome fictício nas obras é uma estratégia acordada entre Ubisoft, editora e autor que dá à desenvolvedora do game todo o controle sobre o conteúdo do livro.
Segundo Corey May, roteirista de Assassin’s Creed, os primeiros livros baseados no jogo tinham como base o roteiro do game. O trabalho, contudo, evoluiu. “Nos últimos volumes, optamos por explorar histórias paralelas, já que os livros nos dão mais espaço. Isso é muito bom para a Ubisoft e também para o autor”, explica. O modelo, segundo May, garante mais liberdade aos autores. “Enviamos informações sobre os personagens e sobre o universo da série a fim de inspirar o escritor, mas evitamos dizer o que deve ser colocado no livro. Ele visita nossos estúdios aqui em Montreal, no Canadá, compartilha conosco suas ideias, nos apresenta um esboço e então damos a ele um feedback.”
Altaïr Ibn-La’Ahad
Personagem comum no game e no livro. Membro da Ordem dos Assassinos
“Altaïr simulou um golpe, girou, e sua lâmina lampejou através da garganta do cristão, que se abriu, cobrindo de sangue a parte da frente de seu uniforme, tingindo-o de uma cor tão vermelha quanto a cruz em seu peito” — trecho do livro
A mecânica de aprovação de outros produtos, como quadrinhos e mangas, é mais complexa, já que envolve também a equipe de arte do jogo, que deve garantir a preservação do estilo dos principais personagens. “Esse é um processo colaborativo, que envolve artistas da Ubisoft, o ilustrador e o roteirista”, afirma May. O procedimento é similar na Blizzard, de acordo com Neilson, da divisão World of Warcraft. “Produzimos alguns quadrinhos com artistas da casa, mas quando é preciso contratar outros roteiristas, o trabalho é feito em conjunto.”
Nos Estados Unidos, os livros baseados em games são populares e tradicionalmente acompanham o lançamento dos grandes títulos. É um modelo que começou a ser explorado já na década de 1990, seguindo o formato tie-in, mais conhecidos em outras áreas: um filme que motiva um livro, por exemplo. Em geral, o sucesso do original impulsiona as vendas do subproduto. No Brasil, esse é um nicho que só começou a ser explorado recentemente.
O selo Galera, do Grupo Record, tem apostado forte nesse segmento e atualmente publica mais de dez livros baseados em games. Outras cinco obras estão programadas para este ano. Segundo Ana Lima, editora-executiva da Galera, o retorno do público tem sido muito satisfatório: os quatro volumes de Assassin’s Creed venderam mais de 450.000 cópias no país. “É o livro tie-in de videogame com vendas mais expressivas”, diz a executiva.
A mesma aceitação tem sido testemunhada no setor de quadrinhos. A Panini Comics, que publica no país oito títulos baseados em jogos, afirma que esse cenário é consequência da maior disponibilidade de games no Brasil, uma resposta à queda nos preços dos títulos e consoles. “O aficionado em games é muito fiel aos jogos de que gosta. Isso torna esse mercado ainda mais interessante”, diz Levi Trindade, editor sênior da Panini.
Tony Gonzalez
Autor americano de duas obras baseadas em EVE, jogo on-line que se passa em um cenário espacial de ficção científica
Autor americano de duas obras baseadas em EVE, jogo on-line que se passa em um cenário espacial de ficção científica
Quantos livros o senhor escreveu em parceria com a CCP, desenvolvedora islandesa de EVE?
Escrevi dois livros: The Empyrean Age e a sua sequência, Templar One. A primeira obra introduz o leitor no universo EVE e seu enredo é baseado nos impérios NPC e em uma guerra galáctica, da qual os jogadores podem participar. Templar One, por sua vez, dá continuidade à história a partir da apresentação de novos personagens.
O que o senhor explorou dos jogos nesses livros? Trata-se de um universo expandido?
Os livros são uma grande ópera mergulhada em ficção científica militar. Eles descrevem um obscuro e distópico futuro para a humanidade e discutem os dilemas morais no universo transumano, a natureza falha do homem e os raios de esperança que inspiram os humanos quando precisam lidar com adversidades. Se o leitor é um grande fã de ficção científica e adora batalhas de espaçonaves e tramas que envolvam interesses políticos e diferentes impérios, então EVE tem muito a oferecer. A história dos livros está profundamente enraizada no jogo, mas a ideia é expandir esse universo para fora da cultura gamer, uma vez que o tema tem grande apelo para o público geral de ficção científica.
Como funciona o processo de criação do livro?
A empresa me diz o que eles precisam nos livros e eu lhes apresento um esboço. Se o material for aprovado, a equipe da CCP me dá o sinal para seguir em frente. Esse conteúdo circula entre os desenvolvedores com mais conhecimento em ficção científica, que me dão um feedback para que eu comece a escrever. Quando a primeira versão está finalizada, as sugestões do corpo de desenvolvedores são incorporadas. Depois de todo esse processo, o livro é finalmente enviado à editora.
Quais são suas referências e inspirações?
Tenho referências muito visuais. Minhas inspirações mais importantes vêm do cinema e dos games. Meus filmes prediletos são Alien, o Oitavo Passageiro, Star Wars: Episódio V — O Império Contra-Ataca e O Resgate do Soldado Ryan. Meus três games prediletos são Wing Commander, Mechwarrior 2 e Jumpgate. Meus três livros preferidos são Duna, A Caçada ao Outubro Vermelho e O Jogo do Exterminador.
Fonte: Revista Veja
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